terça-feira, 19 de maio de 2020

Dica de leitura: "Conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos"

 
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Olga Tokarczuk foi uma das vencedoras do Nobel da Literatura de 2019 (houve dupla vencedora, mas ignoro quem é o outro), e embora nunca este prémio me tenha influenciado antes, um pouco como os livros do Top, embirro à partida, desta vez na livraria, peguei, folheei e comprei. Para ser totalmente sincera, uma amiga polaca já me tinha falado muito bem dos livros, mas esta questão dos gostos é como o Totoloto, e por isso, foi mesmo assim, ler uns parágrafos ao acaso é que realmente me decidiu. E no fim, tudo bateu certo, porque adorei esta leitura; a descrição e simplicidade do mundo rural polaco, tão distinto do nosso, o amor à vida animal, a busca pela Justiça, e o valor da amizade são as tónicas da trama.  
É uma escrita inteligente, sagaz, fluída e bem urdida, tornando o acto de pousar o livro o maior dos desafios, implicados na sua leitura.

A acção localiza-se numa remota aldeia polaca, a protagonista é Janina Duszeijo, professora reformada, à partida algo bizarra, revelando por fim uma personalidade apaixonante, e que é também a narradora. Vive isolada, e tem o hábito de manter as distâncias com as pessoas, tolerando-as apenas; gosta de as baptizar conforme as suas características, como por exemplo "Pé Grande" ou "Papão". A única visita que recebe com gosto é um antigo aluno, com o qual, por prazer, se dedica à tradução do poeta William Blake. 

Numa aldeia rodeada de montanhas, onde a população é diminuta e as actividades idem, a caça torna-se o elemento ao redor do qual a trama gira. Várias mortes se sucedem, um pouco inexplicáveis, que Janina tenta justificar e convencer, para espanto dos demais, aludindo a um conluio do reino animal. Para meu gosto, a personagem é vegetariana, e grande defensora dos animais. Além disso, Janina é uma pessoa inteligente, criativa, arguta e com forte sentido de humor, provocando-me fortes gargalhadas. 

Passo a transcrever parte do "discurso", que ela fez de improviso, quando foi chamada à esquadra, para prestar declarações, não apenas por o achar, realmente, fantástico, mas também com propósito reflexivo, por ser muitíssimo adequado ao momento actual.  

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- Podereis argumentar que não passa de um javali- continuei.- mas o que dizer daquela enxurrada de carne que vem do matadouro e cai diariamente sobre a cidade como uma incessante chuva apocalíptica? Esta chuva anuncia um massacre, doenças, a loucura colectiva, o torpor e a contaminação da mente. Não há coração humano capaz de suportar tanta dor. Toda a complexa psique humana foi-se formando para impedir o homem de compreender aquilo que realmente vê, para que a verdade não chegue até ele, e permanece em volta em ilusões e palavras vazias. O mundo é uma prisão cheia de sofrimento construída de modo que, para se sobreviver, seja preciso infligir dor a outros. Ouvistes? - Dizia-lhes eu, mas, desta vez, até o empregado da limpeza, desiludido com o que estava a dizer, se pôs a trabalhar; por isso, passei a dirigir-me apenas ao caniche: - que mundo é este? Um corpo transformado em calçado, em almôndegas, em salsichas, em um tapete estendido junto à cama, em caldo feito com osso de outro ser... sapatos, sofás, malas de pendurar ao ombro, feitos da barriga de outros seres, aquecer-se à custa do pelo de outrem, comer o corpo de outrem, cortá-los aos pedaços e fritá-lo no óleo... será verdade? Será possível tal pesadelo macabro, tamanha matança, cruel, desapaixonada, mecânica, sem pesos na consciência, sem a mínima reflexão, reflexão que é afinal o objecto dos engenhosos campos da Filosofia e Teologia. Que mundo é este, onde a norma é matar e infligir dor? O que se passa realmente connosco? " Pág. 117

Título: "Conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos"
Autora: Olga Tokarczuk
Nr. de págs: 286
Editora: Cavalo de Ferro