Não há coisas que eu inveje, coisas propriamente materiais que inveje. As minhas invejas recaem mais sobre coisas, como por exemplo, a facilidade com que algumas pessoas têm de fazer uma história. Quando contam as suas peripécias, espantam-me sempre pela abundância de acontecimentos reais que as originaram. E penso com os meus botões quão banal é a minha vida, quase nada acontece digno de memória, quanto mais digno de replica, oral ou escrita.
Portanto a estas pessoas, a matéria-prima que compõe a escrita é tecida num fio condutor que desfia directamente das suas vidas. Logo as suas vidas são excepcionalmente ricas em experiências, acontecem-lhes as coisas mais caricatas e inesperadas, e as pessoas mais excêntricas e profundas são atraídas para elas como insectos pela luz, como uma sub-urdidura que termina naqueles textos que eu leio.
Pelo menos era assim que eu pensava até recentemente; e em abono da verdade, poderia ter suspeitado que a quota de fantasia do autor não estaria ausente de todo, mas quando os próprios autores anunciam os artigos como crónicas, e afirmam as histórias como reais, penso que a minha culpa ou ingenuidade deixa de ser a principal responsável deste julgamento.
Desfez-se este encanto, quando a jornalista que leio no seu blogue, contou num dos seus posts, que a família lhe perguntou admirada, quem eram aquelas pessoas que habitualmente aparecem nas suas histórias, uma vez que eles obrigatoriamente teriam também de as conhecer. E ela teve que concordar que já não eram pessoas, tinham-se tornado personagens, que a sua imaginação fora mais além daquilo que todos viam. Ora, ora...
E então, vem a Lídia Jorge numa das suas crónicas, falar de Santa Apolónia, e de quando foi abordada por uma jovem estrangeira de Leste, que pedia esmola para o filho pequenino, e lhe retorquíra: isso não se faz, sabe, mentir, dizer que tem um filho, e a rapariga desabotoa o blusa, aperta um mamilo e sai dele leite.
Como é que ela foi capaz?!
Quantas vezes, me pediram dinheiro para os filhos, e eu nunca me atrevi a questionar, verbalmente, as razões da mendicidade. Nunca me ocorreu exprimir a minha dúvida, assim como não o faço com o pretexto da fome. Não significa que não duvide, mas também que não seja verdade, e por isso, não querendo roubar-lhes alguma réstia de dignidade que porventura possam ainda possuir, costumo dar sem palavras de afronta. Se eu tivesse originado uma cena destas com esta mendiga, haveria de querer que o chão se abrisse a meus pés e me puxasse para as profundezas da terra. Haveria de guardar a história fechada a sete chaves na minha memória, mas sempre com vergonha e arrependimento. Não teria o estofo para a pôr em palavras, quanto mais partilhá-la publicamente.
E portanto, talvez seja tudo isto que os autores possuem afinal. Não uma sucessão de histórias incríveis com pessoas sui-generis, afluindo às suas vidas como um rio que corre sem parar, mas uma fantasia desbragada, e um total despudor relativo a tudo o que os rodeia.
Portanto a estas pessoas, a matéria-prima que compõe a escrita é tecida num fio condutor que desfia directamente das suas vidas. Logo as suas vidas são excepcionalmente ricas em experiências, acontecem-lhes as coisas mais caricatas e inesperadas, e as pessoas mais excêntricas e profundas são atraídas para elas como insectos pela luz, como uma sub-urdidura que termina naqueles textos que eu leio.
Pelo menos era assim que eu pensava até recentemente; e em abono da verdade, poderia ter suspeitado que a quota de fantasia do autor não estaria ausente de todo, mas quando os próprios autores anunciam os artigos como crónicas, e afirmam as histórias como reais, penso que a minha culpa ou ingenuidade deixa de ser a principal responsável deste julgamento.
Desfez-se este encanto, quando a jornalista que leio no seu blogue, contou num dos seus posts, que a família lhe perguntou admirada, quem eram aquelas pessoas que habitualmente aparecem nas suas histórias, uma vez que eles obrigatoriamente teriam também de as conhecer. E ela teve que concordar que já não eram pessoas, tinham-se tornado personagens, que a sua imaginação fora mais além daquilo que todos viam. Ora, ora...
E então, vem a Lídia Jorge numa das suas crónicas, falar de Santa Apolónia, e de quando foi abordada por uma jovem estrangeira de Leste, que pedia esmola para o filho pequenino, e lhe retorquíra: isso não se faz, sabe, mentir, dizer que tem um filho, e a rapariga desabotoa o blusa, aperta um mamilo e sai dele leite.
Como é que ela foi capaz?!
Quantas vezes, me pediram dinheiro para os filhos, e eu nunca me atrevi a questionar, verbalmente, as razões da mendicidade. Nunca me ocorreu exprimir a minha dúvida, assim como não o faço com o pretexto da fome. Não significa que não duvide, mas também que não seja verdade, e por isso, não querendo roubar-lhes alguma réstia de dignidade que porventura possam ainda possuir, costumo dar sem palavras de afronta. Se eu tivesse originado uma cena destas com esta mendiga, haveria de querer que o chão se abrisse a meus pés e me puxasse para as profundezas da terra. Haveria de guardar a história fechada a sete chaves na minha memória, mas sempre com vergonha e arrependimento. Não teria o estofo para a pôr em palavras, quanto mais partilhá-la publicamente.
E portanto, talvez seja tudo isto que os autores possuem afinal. Não uma sucessão de histórias incríveis com pessoas sui-generis, afluindo às suas vidas como um rio que corre sem parar, mas uma fantasia desbragada, e um total despudor relativo a tudo o que os rodeia.