quarta-feira, 4 de junho de 2014

Crónica da Vida em Pemba, Moçambique


Este blog tem-me permitido conhecer pessoas muito interessantes; que me ensinam e fazem pensar sobre determinados assuntos, levando-me, frequentemente, a rever as minhas opiniões. Foi o caso da Maria Isabel, que com o seu marido, possui e gere o Chuiba Bay Lodge, em Moçambique.

Gostei tanto de ler este seu email que lhe pedi licença para partilhar com os meus leitores. E assim, a crónica de hoje é da minha convidada, a quem agradeço imenso as belíssimas fotos e texto.


E aqui, sinto-me perfeitamente segura. Estamos sozinhos, num raio de 4 ou 5 km, à excepção de uma aldeia Macua com  3.000 habitantes.

Sinto-me mais segura do que em qualquer país muito desenvolvido. Estou em casa.

Quanto à pobreza, é apenas aparente. Nós, cidadãos de países desenvolvidos, é que somos pobres. Passamos um ou dois anos a poupar para ter a em 10 dias a qualidade de vida que os locais daqui têm todo o ano.


Senão veja (estou a dar-lhe a realidade de Pemba):

São pescadores, têm peixe, marisco, cabritos, galinhas, coqueiros, mangueiras, papaeiras, cajueiros, bananeiras, etc.... Têm as suas machambas de mandioca e mapira (um tipo de ervilha seca) e milho - e só cultivam isto porque é a sua cultura. Não gostam de mais nada.

Vendem algum peixe ou cabritos e compram capulanas ou roupa, arroz, óleo e cebolas para cozinhar. Não passam factura de coisa nenhuma, não pagam impostos, e, quando pagam (se têm uma tenda, pagam de 1 a % 3%.

Têm uma alimentação muito mais saudável do que a nossa. Têm corpos esculturais. São felizes como nós já não somos há muitos séculos. Não têm as nossas necessidades nem o espirito consumista das civilizações ditas avançadas. Não  têm stress. Tocam os seus tambores e marimbas e dançam todos os dias. Têm escolas, primarias e secundarias, existe um centro de saúde em cada bairro e cada aldeia, têm hospital, têm 4 universidades.

Respeitam os velhos, o que acontece muito pouco nas sociedades "desenvolvidas".

Passam a maior parte do dia deitados à sombra frondosa das árvores em amena cavaqueira.

Jovem macua com pintura msiro (mascara de beleza)

A terra  pertence às mulheres. Se o marido resolver "arejar", vai com uma mão à frente e outra atrás. As machambas ficam para as mulheres e seus filhos. Mas sempre as mulheres são as donas das terras.

O povo em geral, como acontece em toda a África de Leste, tem raízes  swahili. É negociante por natureza. Compra aqui (de tudo) e vende ali com 50% em cima (desde gasolina, a arroz, a chinelos, a chamussas, a ovos cozidos, a bolinhos, a pão, etc...).E não pagam impostos.

Eu não consigo ter uma factura para peixe, legumes, macuti (cobertura dos telhados, que compro aos barcos cheios, que vem das ilhas com macuti, paus de mangal, bamboo, etc... e que levam para as ilhas bens alimentares que lá não existem.
Como etnias, existem os Macondes,  com mais incidência no planalto de Moeda, e que são grandes escultores. Trabalham em geral o pau preto e outras madeiras exóticas. Temos a etnia Muani (os Kimuanis) - cruzamento de árabes com negros, e que ocupavam o único settlememt em Pemba - o Paquitequete, o bairro mais típico da cidade e que, infelizmente, irá ser deslocado para outras paragens em  virtude da construção do porto que os americanos vão fazer na Baía de Pemba, numa extensão de 20km (aumentando o existente). Estes Kimuanis fazem o negócio com as ilhas, que acima descrevi. Temos ainda a etnia Macua  - pescadores que vivem em bairros ou aldeias junto ao mar ou ao rededor da Baia de Pemba.

Em Pemba há a circular mais 4x4 novos - em geral TOYOTAS HI-LUX com cabines ou TOYOTAS FORTUNER, novos (que aqui custam mais  40.000 Euros) do que no Algarve inteiro, pertencentes às multinacionais  - muitos deles moçambicanos.



Depois, a temperatura aqui oscila entre 20graus à noite até 35 graus durante o dia.

Uma capulana  é suficiente para sevir de cobertor durante a noite. Não precisam de aquecimento nem de ar condicionado. Têm casas meramente para dormir em camas swahili. Todo o resto da vida se faz fora. Cozinham e comem fora, à sombra das arvores (o nosso picnic!).

Damos-lhes pratos e talheres - vendem-nos  e comem com as mãos, fazendo bolinhas com o comer, que depois levam à boca.

Até os meus empregados de mesa e de cozinha, que já são mais evoluídos, o fazem, quando nos não estamos por perto. É a cultura deles. E não vejo nada de errado nisso. Até eu às vezes como com eles a chima com feijão, fazendo as mesmas bolinhas de chima e molhando no molho do feijão guisado. É bom a sério.

De referir que Moçambique tem uma população relativamente pequena. 30.000 habitantes para um pais 7 vezes maior que Portugal.  A população vive geralmente à beira mar ou à beira rio. Têm assim peixe para comer e água para se lavar.

Na cidade e com a chegada do petróleo e do gaz, há jå muitos locais (os que estudaram)  a ganhar de 500 a 1000 Euros por mês. São a classe média que está a crescer a olhos vistos. Chegam alguns a ganhar 2.000 a 3.000 USD, se forem formados em engenharia ou gestão, etc...E andam todos a estudar, independentemente das idades. A maior parte  do meu pessoal, incluindo empregadas de quarto, mesa, cozinha e inclusivamente guardas tem da 9a. classe ao 12o. ano. Tenho amigos locais, com 30  40 anos, a fazer a universidade de noite e a tirar mestrados.

Qualquer dos meus empregados é bem mais culto que os portugueses do mesmo nível. Gosto imenso de falar com eles. Sabem da história dos países circundantes, quem são e foram os presidentes, discutem política....é um erro pensar que são uns coitadinhos. Samora Machel investiu imenso na cultura deste povo. Mandou centenas de milhares de jovens para universidades no estrangeiro (Russia, Inglaterra, USA, países nórdicos, Portugal e muitos mais). Está uma classe média, sobretudo em Maputo, entre os 30 e os 45 anos, formados em Havard, Yale, Oxford e tantas outras universidades, muitíssimo cultos. E há imensas bolsas a estudar no estrangeiro (claro que estas bolsas, hoje em dia, não são acessíveis a todos os Moçambicanos ao contrário do que acontecia no tempo do Samora Machel). E existem ainda por todo o Moçambique, missões, onde missionários de várias origens, olhem as crianças dessa zona, a maior parte em sistema de internato, e as educam - têm escola, quintas onde plantam, semeiam e criam  o que comem e a educação e instrução é excelente.

Claro que ainda há crianças que não vão à escola e velhos que não sabem ler mas que têm a sabedoria da vida, e malandros que preferem roubar a trabalhar. Mas não é por falta de escola, que é obrigatória. Até aqui na aldeia já há uma pré-escola. Já têm há muito tempo escolas primárias. As escolas secundarias estão na cidade, a uns 7 km daqui. Mas estão para abrir agora uma escola secundaria nas proximidades. Claro que as escolas não têm janelas e as vezes nem carteiras têm. Mas janelas não precisam para nada. É como ter lições num grande terraço coberto. E sentar no chão é o que fazem todo o dia.

Muito mais teria para lhe contar, mas fica para outra vez.

Depois, parte a carteira, deita fora, não concerta nem repõe. Parte o vidro, deixa partido, não substitui. É a cultura e está nos genes. Nada a fazer. Vai levar duzentos ou trezentos anos a corrigir esses aspectos.

Há pouca cultura de trabalho, sobretudo no Norte de Moçambique, menos desenvolvido e clima bastante quente. É difícil fazer gente que tem tão boa vida, trabalhar oito horas seguidas. Muitos desistem pura e simplesmente. Voltam à sua vida de antes. 

Nós é que somos loucos. Andamos numa corrida desenfreada, vivemos para trabalhar, não trabalhamos para viver.


Veja só algumas fotos de crianças moçambicanas. Não vejo estes sorrisos de felicidade nas crianças europeias. Dê uma volta às fotos de família onde aparecem crianças e compare. Eu já o fiz. Não tem comparação possível. As caras das crianças Moçambicanas não transparecem stress algum....E se tiver acesso a anúncios moçambicanos - de campanhas publicitárias seja do que for, verá o mesmo sorriso nos adultos que nelas entram. Pelo pais fora se vêem cartazes publicitários seja da Mcell, da Vodacom, ou doutra qualquer empresa, e o comum entre eles é o sorriso franco, aberto, dsepreocupado, feliz.

Sem dúvida uma visão muito diferente daquilo que imaginava e pensava saber. Não posso expressar o quão feliz, e grata, estou por esta partilha.