segunda-feira, 6 de abril de 2020

A minha flor preferida é um lembrete




Durante anos a  túlipa foi a minha flor preferida; era ainda uma miúda quando as notei, no quintal da vizinha de uma prima, plantadas em talhão quadrado, como um qualquer talhão de alhos, por exemplo, e na Primavera lá começavam elas a florir, ano após ano, e que me conste, ninguém as cortava. Talvez uma das filhas levasse algumas para "assear" um santo da Igreja, porque ela era muito dessas coisas; mas sendo o caso, devia escolhê-las de forma a que o talhão permanecesse perfeitamente constituído, e as suas falhas estrategicamente disfarçadas. Aquilo intrigava-me um bocado, certo, eram bonitas de se ver ali no quintal, mas porque não as cortavam para decorar a casa? Também não tenho a certeza que não o fizessem, nunca lhes entrei em casa, mas lá está, o talhão de túlipas parecia perfeitamente intocado.

Eu sempre tive uma certa fascinação por flores, já de criança fazia o meu próprio jardim, na propriedade dos meus avós paternos; o meu pai ajudava-me a alimentar estes gostos, financiando-me na aquisição das flores, e até mas regava, se calhava de me esquecer, ou ao fim de algum tempo me desinteressava; mas não percebia grande coisa de jardinagem, nem nomes, nem técnicas, nem épocas, eu queria era ver as flores a florir, e a dado ponto também plantei tulipas. A sensação que tinha era que os bolbos demoravam uma eternidade a brotar da terra, e que depois de florirem se desvaneciam muito rapidamente. Era frustrante, sobretudo porque não era nada a ideia que tinha do dito talhão, que me parecia ficar em flor, semanas a fio. Se calhar não, seria a minha mente a ludibriar-me, porque como se sabe, aquelas memórias de infância têm sempre o seu quê de fantasioso. 

Entretanto, já adulta e de férias na Holanda, notei em muitas casas umas flores que estavam nos parapeitos de janelas; achei bonito, elegante, e ao fim de alguns dias reuni coragem para perguntar a um senhor, que saía de uma dessa casas, que flores eram aquelas, e a resposta, do senhor muito espantado pela evidência da questão, foi: "´orquídeas"! 

Eu até já tinha recebido de um "pretendente", anos antes, uma orquídea numa caixa de florista, assim toda bem protegida, com o curto caule metido num frasquinho com água, para a preservar. Guardei-a durante muito tempo, mesmo seca achava-lhe graça. Mas entre essa e as holandesas não havia correlação, a primeira era apenas uma pequena flor, as segundas, estavam em vasos, tinham canos altos e finos, e muitas flores, e havia-as de várias cores. A partir daí, não posso garantir, mas acho que foi o meu marido que me ofereceu o primeiro vaso de orquídeas, propagou-se a ideia de que seria uma flor adequada para me oferecer, e passei a recebê-las, como se fossem as minhas flores preferidas. Mas não eram. 

Ao contrário do que me diziam, eram muito resistentes, e por isso fui-as coleccionando; confesso que ainda assim morreram uma ou duas, porque teimava deixá-las na sala de jantar, mas quando comecei a perceber quais os sítios em que elas preferiam ficar, na janela da cozinha ( é o hospital, as fraquinhas recuperam-se milagrosamente ali), a sala de estar, e no meu quarto (aí faço como os holandeses, vários vasos de orquídeas em permanência), elas têm durado anos, e na Primavera, como relógios suíços, lá estão elas a esticar os caninhos verdes, com os botõezinhos, que depois se abrem em flores tão perfeitas tão perfeitas, que parecem falsas. E com o tempo fui-me apercebendo disso, de como parecem delicadas, e porém  de como são robustas as suas pétalas, da singeleza do seu recorte e portanto, extremamente requintado, e para cúmulo, da durabilidade da sua floração. É verdade, não têm odor, mas por isso também podem ficar no quarto. E assim me apercebi que afinal as orquídeas tinham tomado o lugar das tulipas; foi um longo caminho, até chegar a esta conclusão. E porquê? Talvez porque o amor à primeira vista não precisa de argumentos, para se gostar, mas o amor duradouro alimenta-se de pequenas constâncias de que só damos conta ao longo do tempo. 

Só sei que quando as cuido, observo e admiro, dou por mim a pensar em Deus, e a concluir que semelhante perfeição e beleza não podem ser obra do acaso; há propósito e suprema estética naquela visão. Como se elas fossem mensageiras na terra dos planos celestes, em magnifica afirmação do "eu existo".