segunda-feira, 20 de abril de 2020

Dica de leitura - Vozes de Chernobyl

 
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Ando para aqui a postergar esta dica de leitura por causa do vírus. As coisas já estão tão más que a referência a um livro com histórias profundamente dramáticas, devido à explosão de um reactor nuclear em 1986, na Ucrânia ( mas que afectou mais ainda a Bielorrússia pela proximidade e vento) me parecia demasiado. Estes dias, lavrou pela mesma região um incêndio, e aquela terra ainda tão contaminada, sofreu mais uma desgraça, que aliás os ventos podem levar a outras regiões da Europa. Portanto, que isto seja uma espécie de homenagem àquele povo, e um alerta, para que mais pessoas saibam o que ali se passou, e quão heróicos foram os que se sacrificaram por um bem maior. Maior até do que o próprio pais, pois na época se mais reactores explodissem a tragédia abrangeria todo a Europa. Esse risco existiu. Eu não tinha noção de nada disto. E por último, esta leitura faz diversos paralelismos à nossa actual conjuntura, que merece reflexão.

O livro é da autoria de Svetalana Alexievich, que recebeu o Nobel da Literatura em 2015, e que inventou um novo género: "romance de vozes", ou seja, as personagens são quem narra, são os próprios intervenientes das suas histórias, captando a cada um a sua essência. Logo na primeira história as lágrimas caíram-me pelo rosto, molhei a página e fechei o livro, pensando, como vou conseguir ler isto até ao fim? Mas senti que era importante fazê-lo, aliás um dos desabafos destas pessoas era que ninguém quereria saber das suas histórias, temos que lhes provar o contrário, que nos importamos. Para outros, era importante que as suas histórias fossem recolhidas, como exemplo da maior catástrofe tecnológica da história da humanidade. Fosse como fosse, era importante ler. E consegui, graças a uma estratégia que se revelou eficaz mas não partilharei aqui. Se alguém quiser saber, por querer ler o livro, envie-me um email.

O livro comoveu-me intensamente pelas histórias pessoais, por vezes tão simples, como o dos recém-casados, ela amava-o tanto, não podia amá-lo mais nem que ele tivesse saído dentro do seu ventre; como a da velhinha que antes de partir de sua casa lhe dirigiu palavras de gratidão e despedida; das crianças que já não correm pelas florestas a colher bagas e cogumelos. Pelo amor à Natureza, a um estilo de vida simples, tão simples como a do mundo rural do séc. XIX. E pela fé, pela crença em Deus, que nem o regime comunista conseguiu destruir. Isto espantou-me, não estava de todo à espera.

Há tantos excertos que quero partilhar, vai dar um post gigante, mas vou tentar conter-me. 

Quando aconteceu, a explosão foi relatada como um simples incêndio, os bombeiros dirigiram-se para a central em mangas de camisa. As pessoas continuaram com as suas vidas, janelas abertas para arejar, crianças a brincar na rua. E a verdade foi ocultada por muitos dias, e depois minimizada. As populações foram tranquilizadas. E finalmente, a culpa era do inimigo, ataque de alguma nação hostil, provavelmente os E.U. . Isto tudo coincidiu com a Perestroika, o desmembramento da Rússia, per se, um evento devastador a diversos níveis, que não ajudou propriamente na resolução eficaz deste acidente.

Ao falarmos do desastre de Chernobyl lembramo-nos das pessoas, mas sobretudo pela Bielorrúsia ser um pais predominantemente rural, esquecemo-nos dos campos e dos animais; o sacrifício dos animais foi algo que marcou profundamente aquelas gentes, mudando-as inclusivamente. Os campos e as árvores estavam fecundos por colheitas excepcionais, e ter que deixar para trás, subitamente, o produto do trabalho, foi-lhes penoso e incompreensível; tudo parecia normal e tentador, estava portanto contaminado pelo átomo nuclear, que pela invisibilidade lhes era algo alheio e até imaginário. Alguns colhiam e comiam às escondidas, regressando de noite às suas casas; Chernobyl assustava-os menos do que deixar as batatas por apanhar, continuaram a colher e a comer, o ano fora tão bom! P.156

Para alguns, coube-lhe na vida uma tríplice de catástrofes inimagináveis para nós, o Gulag Estalinista, a Segunda Grande Guerra e agora Chernobyl; " a memória sugeria-nos...Temos sempre vivido em ambiente de horror, sabemos viver em ambiente de horror, é o nosso habitat. Quanto a isto o nosso povo não tem igual..."p.207

Aos milhares de soldados, juntaram-se os voluntários, para limparem a radiação, " do ponto de vista da nossa cultura, pensar em si próprio é egoísta, há sempre algo maior" p.175, e portanto estes homens foram postos a trabalhar sem equipamento especial, sem qualquer preparação, prosseguindo onde os robots falhavam, e recebendo após cada turno, vodka, para lhes limpar a radiação. Como limpavam e lavavam a radiação das ruas, das casas, dos objectos é tragico-cómico, ao lermos agora. Mas na época, o desconhecimento do nuclear era geral e vasto. 

As pessoas começaram a morrer, maridos, filhos, irmãos. De formas nunca antes vistas e aterrorizadoras. E a verdade foi-se divulgando, as pessoas começaram a querer saber de quem era a culpa. Quem é o responsável, quem são os responsáveis? É provavelmente a pergunta que não cala ainda hoje. Estes depoimentos, foram 500 no total, foram recolhidos 10 anos após o desastre, e as pessoas estavam ainda atordoadas, na dor, na incompreensão. 

Naquela zona, as pessoas não se dizem russas ou bielorrussas, são chernobylianos. Uma raça à parte, de quem muitos fogem e temem. Os seus filhos têm doenças congénitas, os cancros atingem percentagens absurdas, quase que se transformaram em casos mitológicos. As jovens não querem casar com eles. As taxas de mortalidade ultrapassam as de natalidade, havendo por isso um declínio demográfico. p.20 Suspeitam, e receiam, estar em extinção como outros povos antes deles.

Cada testemunha, desde o trabalhador agrícola, ao médico, investigador, engenheiro, oferecem relatos de uma profundidade espectacular, reflectidos, com a sagacidade de filósofos invulgares. É de uma beleza pungente.

Chernobyl continua bela, selvagem e luxuriante, mas está contaminada e estará por milhões de anos. 
Este é mesmo o livro que todos deveriam ler!