terça-feira, 14 de março de 2023

- Está tudo mesmo muito bem?

 Ao entrar na loja já os dois funcionários conversavam com a senhora, de forma que me pareceu de imediato muito pessoal, cumprimentamo-nos e segui, para a secção das toalhas de mesa, onde por momentos me concentrei na escolha de texturas e tamanhos, porém, às páginas tantas, devido, talvez, ao repetitivo "Que bom!" que soava como um mantra, a minha atenção dirigiu-se para a conversa. Em minha defesa, a loja é ampla e aquelas pessoas conversavam num tom de voz que não era propriamente baixo. Obviamente, já tinha perdido parte do diálogo, e por vezes a minha atenção voltava a focar-se mais nos tecidos que apalpava e escolhia, o que me fazia perder mais informação, mas basicamente foi isto: 

- Ah, a minha neta está muito bem! Agora a fazer o Mestrado no...( estrangeiro, não percebi o pais), e embora não tivesse direito a bolsa, porque...devido aos pais, não é?! Candidatou-se à bolsa de mérito, e ganhou. Ela sempre foi a melhor da turma, desde pequena. Está tudo na Conta, nem toca nesse dinheiro. Quando o avô lhe der o carro, no final do curso, vai lá buscar esse dinheiro, para comprar um melhor, como ela já disse. 

- Que bom!

-Ah, o meu neto está em ....( não entendi qual curso nem onde), que é mesmo o melhor! Pergunte, informe-se com quem saiba, se o seu filho realmente pretender seguir essa área! Mas é que ele nem hesitou, entrou onde queria, no melhor!

- Que bom!

- Claro que estando os nossos 3 netos a estudar fora só os vemos nas férias, mas no verão vêm sempre passar uns dias connosco na praia, e eles adoram! Estão sempre a perguntar para quando marcamos outra vez. 

-Que bom!

- Por acaso, a minha nora nessa altura foi promovida a chefe de serviço da clínica, precisamente quando o meu filho.... ( não percebi, mas qualquer coisa boa, pois seguiu-se o recorrente comentário):

- Que bom!

Por fim, já quando pagava, lá se lembrou de perguntar como estavam os filhos de quem a atendia, mas a resposta foi sucinta e rápida. Eu é que fiquei a pensar, já um pouco contagiada: olha que bom, para variar alguém a quem acontece só coisas boas! 

Porém, entretanto, fiquei a pensar ainda mais na conversa, e em como o foco do "bom" estava nos estudos, no sucesso dos estudos, nas boas-melhores-faculdades, nas promoções, no dinheiro.

E lembrei-me de que há cerca de 3 semanas soube que a filha de uma prima afastada (com quem nunca estou, e se a visse nem a reconheceria), no último ano de Medicina, se tinha suicidado. A família está toda em choque, como se pode imaginar. E pensei: Será que a mãe, a avó, a família, quando se referiam a ela, também falavam com orgulho do sucesso presente, e futuro promissor, sem notarem algo sombrio, que a consumia interiormente? E quem os ouvia também respondia "Olha que bom!"? 

Por acaso, e felizmente, quando me perguntam pelos meus filhos, quase invariavelmente, respondo que estão bem, e relativamente à Letícia acrescento também, quase sempre, "embora bastante cansada"; porque o que primeiro me ocorre no estado dos meus filhos é mesmo o psicológico, saber se eles estão bem, o resto são etapas dos anos de vida, que se vão fazendo. E embora sendo importantes, são também muito superficiais. É preciso prestar atenção às camadas inferiores, sob pena de perder algo verdadeiramente importante.